Trecho literal do livro (da página 17 a 24 ) "Educação Inclusiva Atendimento Educacional Especializado para o aluno com Deficiência mental " Autoras: Cristina Abranches Mota Batista e Maria Teresa Egler Mantoan
O que precisa
ser
O atendimento
educacional especializado decorre de uma nova visão da Educação
Especial, sustentada legalmente e é uma das condições para o
sucesso da inclusão escolar dos alunos com deficiência. Esse
atendimento existe para que os alunos possam aprender o que é
diferente do currículo do ensino comum e que é necessário para que
possam ultrapassar as barreiras impostas pela deficiência.
As barreiras da
deficiência mental diferem muito das barreiras encontradas nas
demais deficiências. Trata-se de barreiras referentes à maneira de
lidar com o saber em geral, o que reflete preponderantemente na
construção do conhecimento escolar. Por esse motivo, a educação
especializada, realizada nos moldes do treinamento e da adaptação,
reforça a condição de deficiente desse aluno. Essas formas de
intervenção mantêm o aluno em um nível de compreensão que é
muito primitivo e que a pessoa com deficiência mental tem
dificuldade de ultrapassar - nas chamadas regulações automáticas,
de Piaget.
É necessário
que se estimule o aluno com deficiência mental a progredir nos
níveis de compreensão, criando novos meios para se adequarem às
novas situações, ou melhor, desafiando-o a realizar regulações
ativas. Assim sendo, o aluno com deficiência mental precisa
adquirir, através do atendimento educacional especializado,
condições de passar de um tipo de ação automática e mecânica
diante de uma situação de aprendizado/experiência para um outro
tipo, que lhe
possibilite selecionar e optar por meios mais convenientes de atuar
intelectualmente.
O atendimento
educacional para tais alunos deve, portanto, privilegiar o
desenvolvimento e a superação daquilo que lhe é limitado,
exatamente como acontece com as demais deficiências, como exemplo:
para o cego, a possibilidade de ler pelo Braille, para o surdo a
forma mais conveniente de se comunicar e para a pessoa com
deficiência física, o modo mais adequado de se orientar e se
locomover.
Para a pessoa
com deficiência mental, a acessibilidade não depende de suportes
externos ao sujeito, mas tem a ver com a saída de uma posição
passiva e automatizada diante da aprendizagem para o acesso e
apropriação ativa do próprio saber.
De fato, a
pessoa com deficiência mental encontra inúmeras barreiras nas
interações que realiza com o meio para assimilar, desde os
componentes físicos do objeto de conhecimento, como por exemplo, o
reconhecimento e a identificação da cor, forma, textura, tamanho e
outras características que ele precisa retirar diretamente desse
objeto. Isso ocorre, porque são pessoas que apresentam prejuízos no
funcionamento, na estruturação e na re-elaboração do
conhecimento. Exatamente por isso não adianta propor atividades que
insistem na repetição pura e simples de noções de cor, forma etc
para que a partir desse suposto aprendizado o aluno consiga dominar
essas noções e as demais propriedades físicas dos objetos, e ainda
possa transpô-las para um outro contexto. A criança sem deficiência
mental consegue espontaneamente retirar informações do objeto e
construir conceitos, progressivamente. Já a criança com deficiência
mental precisa de outra atenção, ou seja, de exercitar sua
atividade cognitiva, de modo que consiga o mesmo, ou uma aproximação
do mesmo.
Esse exercício
implica em trabalhar a abstração por meio da projeção das ações
práticas em pensamento. A passagem das ações práticas e a
coordenação dessas ações em pensamento são partes de um processo
cognitivo que é natural para aqueles que não têm deficiência
mental. E para aqueles que têm uma deficiência mental, essa
passagem deve ser estimulada e provocada, de modo que o conhecimento
possa se tornar consciente e interiorizado. O esquema abaixo ilustra
esse processo de construção mental do conhecimento, desenvolvido
pela teoria piagetiana.
ESQUEMA: O
processo de construção mental do conhecimento.
Em um primeiro
momento há a Ação Prática (Coordenação das ações diretamente
sobre os objetivos), o que gera uma Projeção, que leva ao 1º Nível
que é a Ação Simbólica (Coordenação das ações práticas em
pensamento, com diferentes níveis de compreensão), gerando outra
Projeção, levando ao 2º Nível denominado Ação Simbólica
(Coordenação dos significados atribuídos na ação anterior) e
assim sucessivamente.
O atendimento
educacional especializado para as pessoas com deficiência mental
está centrado na dimensão subjetiva do processo de conhecimento,
complementando o conhecimento acadêmico e o ensino coletivo que
caracterizam a escola comum. O conhecimento acadêmico exige o
domínio de um determinado conteúdo curricular; o atendimento
educacional, por sua vez, refere-se à forma pela qual o aluno trata
todo e qualquer conteúdo que lhe é apresentado e como consegue
significá-lo, ou seja, compreendê-lo.
É importante
esclarecer que o atendimento educacional especializado não é ensino
particular, nem reforço escolar. Ele pode ser realizado em grupos,
porém atento para as formas específicas de cada aluno se relacionar
com o saber. Isso também não implica em atender a esses alunos,
formando grupos homogêneos com o mesmo tipo de problema (patologias)
e/ou desenvolvimento. Pelo contrário, os grupos devem se constituir
obrigatoriamente por alunos da
mesma faixa
etária e em vários níveis do processo de conhecimento. Alunos com
síndrome de Down, por exemplo, poderão compartilhar esse
atendimento com seus colegas autistas, com outras síndromes,
sequelas de paralisia cerebral e ainda outros com ou sem uma causa
orgânica esclarecida de sua deficiência e com diferentes
possibilidades de acesso ao conhecimento.
O atendimento
educacional especializado para o aluno com deficiência mental deve
permitir que esse aluno saia de uma posição de “não-saber”, ou
de “recusa de saber” para se apropriar de um saber que lhe é
próprio, ou melhor, que ele tem consciência de que o construiu.
A inibição,
definida na teoria freudiana, ou a “posição débil” enunciada
por Lacan provocam atitudes particulares diante do saber,
influenciando a pessoa na aquisição do conhecimento acadêmico. É
importante ressaltar que o saber da Psicanálise é o “saber
inconsciente”, relativo à verdade do sujeito. Em outras palavras,
trata-se de um processo inconsciente e o que o sujeito recusa saber é
sobre a própria incompletude, tanto dele, quanto do outro. O aluno
com
deficiência
mental, nessa posição de recusa e de negação do saber fica
passivo e dependente do outro (do seu professor, por exemplo), ao
qual outorga o poder de todo o saber. Se o professor assume o lugar
daquele que sabe tudo e oferece todas as respostas para seus alunos,
o que é muito comum nas escolas e principalmente na prática da
Educação Especial, ele reforça essa posição débil e de
inibição, não permitindo que esse aluno se mobilize para
adquirir/construir qualquer tipo de conhecimento.
Quando o
atendimento educacional permite que ao aluno traga a sua vivência e
que se posicione de forma autônoma e criativa diante do
conhecimento, o professor sai do lugar de todo o saber. Dessa
maneira, o aluno pode se questionar e modificar sua atitude de recusa
do saber e sua posição de “não saber”. Ele, então, pode se
mobilizar e buscar o saber. Na verdade, é tomando consciência de
que não sabe, que o aluno pode se mobilizar e buscar o saber. A
liberdade de criação e de posicionamento autônomo do aluno diante
do saber permite que sua verdade seja colocada, o que é fundamental
para os alunos com deficiência mental. Ele deixa de ser o
“repeteco”, o eco do outro e se torna um ser pensante e desejante
de saber.
Mas o
atendimento educacional não deve funcionar como uma análise
interpretativa, própria das sessões psicanalíticas, e nem como uma
intervenção psicopedagógica, tradicionalmente praticada. Esse
atendimento deve permitir ao aluno elaborar suas questões, sua
ideias, de forma ativa e não corroborar para sua alienação diante
de todo e qualquer saber.
Como, onde e
quando?*
A escola
(especial e comum) ao desenvolver o atendimento educacional
especializado deve oferecer todas as oportunidades possíveis para
que nos espaços educacionais em que ele acontece, o aluno seja
incentivado a se expressar, pesquisar, inventar hipóteses e
reinventar o conhecimento livremente.
Assim, ele pode
trazer para os atendimentos os conteúdos advindos da sua própria
experiência, segundo seus desejos, necessidades e capacidades. O
exercício da atividade cognitiva ocorrerá a partir desses
conteúdos.
Devem ser
oferecidas situações, envolvendo ações em que o próprio aluno
teve participação ativa na sua execução e/ou façam parte da
experiência de vida dele. Essa prática difere de todo modelo de
atuação privilegiado até então pela Educação Especial.
Trabalhar a ampliação da capacidade de abstração não significa
apenas desenvolver a memória, a atenção, as noções de espaço,
tempo, causalidade, raciocínio lógico em si mesmas. Nem tão pouco
tem a ver com a desvalorização da ação direta sobre os objetos de
conhecimento, pois a ação é o primeiro nível de toda a construção
mental.
O objetivo do
atendimento educacional especializado é propiciar condições e
liberdade para que o aluno com deficiência mental possa construir a
sua inteligência, dentro do quadro de recursos intelectuais que lhe
é disponível, tornando-se agente capaz de produzir
significado/conhecimento.
O contato direto
com os objetos a serem conhecidos, ou seja, com a sua “concretude”
não pode ser descartada, mas o importante é intervir no sentido de
fazer com que esses alunos percebam a capacidade que têm de pensar,
de realizar ações em pensamento, de tomar consciência de que são
capazes de usar a inteligência de que dispõem e de ampliá-la, pelo
seu esforço de compreensão, ao resolver uma situação problema
qualquer. Mas sempre agindo
com autonomia
para escolher o caminho da solução e a sua maneira de atuar
inteligentemente.
O aluno com
deficiência mental, como qualquer outro aluno, precisa desenvolver a
sua criatividade, a capacidade de conhecer o mundo e a si mesmo, não
apenas superficialmente ou por meio do que o outro pensa. O nosso
maior engano é generalizar a dotação mental das pessoas com
deficiência mental em um nível sempre muito baixo, carregado de
preconceitos sobre a capacidade de, como alunos, progredirem na
escola, acompanhando os demais colegas. Desse engano derivam todas as
ações educativas que desconsideram o fato de que cada pessoa é uma
pessoa, que tem antecedentes diferentes de formação, experiências
de vida e que sempre é capaz de aprender e de exprimir um
conhecimento.
Uma atividade
muito utilizada pelos professores de alunos com deficiência mental é
fazer bolinhas de papel para serem coladas sobre uma figura traçada
pelo professor em uma folha mimeografada. Essa atividade pode ser
explorada de duas maneiras, com objetivos distintos. Uma delas é
desenvolvê-la de forma alienante, limitada, repetitiva, reduzindo-se
a um mero exercício de coordenação motora fina, realizado durante
horas e sem o menor sentido para o aluno. A mesma atividade pode
explorar a inteligência desse aluno se fizer parte de um plano e for
uma escolha do aluno para reproduzir o miolo de uma flor, por
exemplo. A colagem seria, neste caso, uma estratégia que ele mesmo
selecionou para demonstrar o seu conhecimento das partes de um
vegetal e não unicamente para preencher o espaço de uma folha que
lhe foi entregue. No estudo das partes de um vegetal, essa atividade
é uma entre várias que os alunos escolheram e recriaram, fazendo
parte de todo um conjunto de trabalho, em que a flor é parte de
outras noções pertinentes ou não ao plano.
O que mais
importa é que ele permita que os alunos tenham condições de
enfrentar a atividade e que tomem consciência do que sabem, do que
não sabem e do que querem saber a respeito do que está sendo
estudado. Essa consciência permite que os alunos expressem seus
questionamentos e conhecimentos a respeito de tudo o que um objeto
possa suscitar com liberdade e utilizando a sua criatividade.
É visível o
efeito desses dois tipos de produção. Na sala onde ela é realizada
de forma mecânica, o mural reproduzirá um modo seriado,
estereotipado de agir; que reflete o desenho do professor. Na outra,
o mesmo mural revelará as infinitas possibilidades da criação, ou
seja, do trabalho cognitivo dos alunos, ao aprender e da professora,
ao ensinar.
O atendimento
educacional especializado não deve ser uma atividade que tenha como
objetivo o ensino escolar especial adaptado para desenvolver
conteúdos acadêmicos, tais como a Língua Portuguesa, a Matemática,
dentre outros. Com relação a Língua Portuguesa e a Matemática, o
atendimento educacional especializado buscará o conhecimento que
permite ao aluno a leitura, a escrita e a quantificação, sem o
compromisso de sistematizar essas noções como é o objetivo da
escola.
Para
possibilitar a produção do saber e preservar sua condição de
complemento do ensino regular, o atendimento educacional
especializado tem de estar desvinculado da necessidade típica da
produção acadêmica. A aprendizagem do conteúdo acadêmico limita
as ações do professor especializado, principalmente quanto ao
permitir a liberdade de tempo e de criação que o aluno com
deficiência mental precisa ter para organizar-se diante do desafio
do processo de construção do conhecimento. Esse processo de
conhecimento, ao contrário do que ocorre na escola comum, não é
determinado por metas a serem atingidas em uma determinada série, ou
ciclo, ou mesmo etapas de níveis de ensino ou de desenvolvimento.
O processo de
construção do conhecimento, no atendimento educacional
especializado, não é ordenado de fora, e não é possível ser
planejado sistematicamente, obedecendo a uma sequência rígida e
predefinida de conteúdos a serem assimilados. E assim sendo, não
persegue a promoção escolar, mesmo porque esse aluno já está
incluído.
Na escola comum,
o aluno constrói um conhecimento necessário e exigido socialmente e
que depende de uma aprovação e reconhecimento da aquisição desse
conhecimento por um outro, seja ele o professor, pais, autoridades
escolares, exames e avaliações institucionais.
No atendimento
educacional especializado, o aluno constrói conhecimento para si
mesmo, o que é fundamental para que consiga alcançar o conhecimento
acadêmico. Aqui, ele não depende de uma avaliação externa,
calcada na evolução do conhecimento acadêmico, mas de novos
parâmetros relativos as suas conquistas diante do desafio da
construção do conhecimento.
Portanto, os
dois; escola comum e atendimento educacional especializado, precisam
acontecer concomitantemente, pois um beneficia o desenvolvimento do
outro e jamais esse beneficio deverá caminhar linear e
sequencialmente, como se acreditava antes.
Por maior que
seja a limitação do aluno com deficiência mental, ir à escola
comum para aprender conteúdos acadêmicos e participar do grupo
social mais amplo favorece o seu aproveitamento no atendimento
educacional especializado e vice-versa. O atendimento educacional
especializado é, de fato, muito importante para o progresso escolar
do aluno com deficiência mental.
Aqui é
importante salientar que a “socialização” justificada, como
único objetivo da entrada desses alunos na escola comum,
especialmente para os casos mais graves, não permite essa
complementação e muito menos significa que está havendo uma
inclusão escolar. A verdadeira socialização, em todos os seus
níveis, exige construções cognitivas e compreensão da relação
com o outro. O que tem acontecido, em nome dessa suposta
socialização, é uma espécie de tolerância da presença do aluno
em sala de aula e o que decorre dessa situação é a perpetuação
da segregação, mesmo que o aluno esteja frequentando um ambiente
escolar comum.
O arranjo físico
do espaço reservado ao atendimento precisa coincidir com o seu
objetivo de enriquecer o processo de desenvolvimento cognitivo do
aluno com deficiência mental e de oferecer-lhe o maior número
possível de alternativas de envolvimento e interação com o que
compõe esse espaço.
Portanto, não
pode reproduzir uma sala de aula comum e tradicional. O espaço
físico para o atendimento educacional especializado deve ser
preservado, tanto na escola especial como na escola comum, ou seja,
deve ser criado e utilizado unicamente para esse fim.
O tempo
reservado para esse atendimento será definido conforme a necessidade
de cada aluno e as sessões acontecerão sempre no horário oposto ao
das aulas do ensino regular.
As escolas
especiais, diante dessa proposta, tornam-se espaços de atendimento
educacional especializado nas diferentes deficiências para as quais
foram criadas e devem guardar suas especificidades. Elas não podem
justificar a manutenção da estrutura e modelo da escola comum,
recebendo alunos sem deficiência – a chamada “inclusão ao
contrário” e nem mesmo atender a todo o tipo de deficiência em um
mesmo espaço especializado.
As instituições
especializadas devem fazer o mesmo com suas escolas especiais e
também conservar o atendimento clínico especializado.
A avaliação do
atendimento educacional especializado, seja a inicial como a final,
têm o objetivo de conhecer o ponto de partida e o de chegada do
aluno, no processo de conhecimento. Para que se possa montar um plano
de trabalho para esse atendimento, não é tão importante para o
professor saber o que o aluno “não sabe”, quanto saber o que ele
já conhece de um dado assunto.
A terminalidade
desse atendimento deve ocorrer independentemente do desempenho
escolar desses alunos na escola comum, porque o que se pretende com
essa complementação não se reduz ao que é próprio da escola
comum. Essa terminalidade pode ser o início da Educação
Profissional das pessoas com deficiência mental.
A interface
entre o atendimento educacional especializado e a escola comum
acontecerá conforme a necessidade de cada caso, sem a intenção
primeira de apenas garantir o bom desempenho escolar do aluno com
deficiência mental, mas muito mais para que ambos os professores se
empenhem em entender a maneira desse aluno lidar com o conhecimento
no seu processo construtivo. Esse esforço de entendimento conjunto
não caracteriza uma forma de orientação pedagógica do professor
especializado para o professor comum e vice-versa, mas a busca de
soluções que venham a beneficiar o aluno de todas as maneiras
possíveis e não apenas para avançar no conteúdo escolar.
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